Essa história é extremamente complicada e não poderá ser narrada com muitos pormenores aqui. E, na verdade, uma história controvertida e discutível. Qualquer tentativa de recontá-la será forçosamente alvo de críticas de pessoas com prometidas com um a versão diferente. Apesar disso, o esboço e os acontecimentos básicos dessa história serão o tópico do restante do presente capítulo.
Os próprios apóstolos usavam a Bíblia hebraica e certamente consideravam-na autorizada. Embora muitos escritos judaicos existissem nos tempos de Jesus e dos apóstolos, o cânon das Escrituras hebraicas era relativamente fixo e claro. O partido dos fariseus dominava as sinagogas judaicas e, depois da destruição do templo em Jerusalém em 70, procurou reformar o judaísmo de modo que pudesse existir por tempo ilimitado na diáspora (no exílio da Palestina) sem um templo. Uma parte desse processo foi a definição formal das Escrituras inspiradas do judaísmo. Embora exista certa divergência no tocante ao Concílio de Jâmnia, onde os rabinos se encontraram em 90, parece que foram dados ali alguns passos importantes em direção ao processo oficial da canonização. A Bíblia hebraica ficou definida com vinte e dois livros inspirados: desde o Pentateuco até aos Profetas Menores. Nas Bíblias cristãs posteriores, alguns livros do cânon judaico foram subdivididos, perfazendo um total de trinta e nove livros individuais. A versão grega das Escrituras hebraicas, que é chamada Septuaginta, ou LXX, continha todos eles, bem com o alguns livros escritos depois de Malaquias, que são principalmente de relevância histórica. Estes incluem os livros dos Macabeus e outros livros chamados (pelos cristãos) de interbíblicos ou apócrifos. A maioria dos primeiros pais da igreja no século II empregava a Septuaginta, assim com o Paulo e outros apóstolos. Mas, para fazer suas citações, quase sempre usavam os vinte e dois livros canônicos e raramente os livros históricos e apócrifos posteriores.
De modo geral, portanto, podem os dizer com segurança que a maioria dos primeiros pais da igreja nos séculos II e III aceitavam a decisão dos líderes judaicos de ampliar o conteúdo das Escrituras inspiradas para além do Pentateuco (Gênesis até Deuteronômio) e restringi-lo aos vinte e dois (ou trinta e nove) livros da Lei e dos Profetas. Esta, portanto, era “a Bíblia” das primeiras igrejas cristãs depois dos apóstolos. Na época de Clemente de Roma e dos demais pais apostólicos, as cartas dos apóstolos e os Evangelhos considerados de autoria dos apóstolos, ou de seus colegas mais íntimos, foram reunidos e chamados “Apóstolos”, justapondo-os com os “Profetas” da Bíblia hebraica. Sendo assim, já antes do ano 200, vários pais e bispos da igreja estavam se referindo a um a coletânea de escritos inspirados e autorizados conhecidos por “os Profetas e os Apóstolos” e tratando essa massa amorfa com o um critério e norma de verdade para a fé e prática cristãs. No entanto, ainda não existia nenhum equivalente cristão da Bíblia hebraica que tivesse o reconhecimento oficial ou fosse unanimemente aceito.
Os estudiosos em geral concordam , mais um a vez, que a igreja deve muita coisa a um herege. Segundo um grande historiador eclesiástico: “A idéia e a realidade de um a Bíblia cristã foram obra de Marcião e a Igreja, que rejeitou a sua obra, longe de estar adiante dele nesse campo, do ponto de vista formal, simplesmente seguiu o seu exemplo”. Marcião foi um mestre cristão de grande influência em Roma em meados do século II. Apesar da longa distância que os separava geograficamente, Marcião e Montano eram contemporâneos e tinham certas características em comum . Embora a teologia de Marcião estivesse mais próxima a algumas formas do gnosticismo, ele, da mesma forma que Montano, considerava que a igreja necessitava urgentemente de um a reforma e pôs mãos à obra para reformá-la, tentando redescobrir e promover o que considerava o ensino verdadeiro e original de Jesus. Para tanto (segundo Marcião acreditava), seria necessário remover do cristianismo todos os vestígios do judaísmo, inclusive a Bíblia hebraica e seu Deus, Iavé. Para ele, o AT não tinha a mínima validade para os cristãos e o Deus descrito nele era um semideus tribal sanguinário que não merecia a adoração ou culto dos cristãos. As semelhanças entre Marcião e o gnosticismo aparecem na sua idéia de que o Deus do AT criou, erradamente, a matéria, e que a matéria é a origem do mal. Para Marcião, o Iavé do AT era mais demoníaco do que divino.
Marcião foi, talvez, o primeiro cristão que tentou definir um cânon cristão das Escrituras inspiradas e quis limitá-lo exclusivamente aos escritos dos apóstolos que considerava livres de qualquer vestígio do judaísmo. A Bíblia de Marcião constituía-se de duas partes: uma versão editada do evangelho segundo Lucas e dez epístolas de Paulo. Até mesmo o “apóstolo” foi editado por Marcião para livrar as dez epístolas de todos dos “elementos judaizantes”.
Marcião e sua versão antijudaica das Escrituras cristãs tiveram rápida aceitação entre alguns cristãos, e igrejas marcionitas foram surgindo de repente em Roma, Cartago, e em outras cidades. Os pais e bispos principais da igreja atacaram com severidade Marcião e seus seguidores. A obra de Tertuliano Contra Marcião é um excelente exemplo da polêmica cristã antimarcionita na época da virada do século (201). Ireneu, também , criticou Marcião e os seus ensinos, em Contra heresias, e outros pais da igreja dos séculos II e III fizeram o mesmo. Alguns cristãos da antiguidade claramente consideravam Marcião como o arqui-herege e principal inimigo do cristianismo ortodoxo e católico. Apesar disso, igrejas marcionitas sobreviveram em cidades de todas as partes do império, até serem fechadas pelos primeiros imperadores cristãos.
Uma das reações ao cânon das Escrituras cristãs truncado por Marcião foi criar o cânon correto e a primeira tentativa semi-oficial aconteceu em Roma. Por volta de 170, a igreja cristã de Roma criou o Cânon muratório para rebater o de Marcião e fornecer aos cristãos um a lista completa de “Profetas e Apóstolos” autorizados. O Cânon muratório alistava os quatro evangelhos, Atos e os demais livros contidos no NT (conforme a definição que existe ainda hoje), à exceção de Hebreus, Tiago e I e II Pedro. Incluía, ainda, A sabedoria de Salomão, mas notavelmente excluía o sempre popular e influente O pastor de Hermas. O Cânon muratório representa um passo crucial no desenvolvimento da vida organizacional oficial da igreja cristã: foi a primeira tentativa de identificar um a lista definitiva de escritos cristãos com o mesmo nível da Bíblia hebraica. Embora essa lista não seja a da versão definitiva, certamente contribuiu para o pensamento cristão ficar tomado pela idéia de um a Bíblia cristã e deixou claro que não excluiria as Escrituras hebraicas, nem estaria aberta para incluir toda e qualquer nova profecia ou escrito supostamente inspirado.
Os critérios exatos usados pelos que com puseram o Cânon muratório não são conhecidos com clareza. Na verdade, sempre houve debates a respeito dos principais critérios nos quais a igreja poderia se basear para reconhecer certos escritos com o autorizados e inspirados. O historiador eclesiástico von Campenhausen está mais perto da verdade ao chamar o critério principal de “princípio profético apostólico”. Essa não é um a regra rígida, mas uma medida flexível mediante a qual os escritos eram julgados pelos cristãos primitivos envolvidos nesse processo. O princípio profético-apostólico significa simplesmente que os livros e as cartas precisavam ser amplamente reconhecidos por todas as igrejas cristãs com o um a reflexão da autoridade apostólica (se não tiverem sido escritos por um apóstolo) e com o um a apresentação de verdades importantes para a salvação e o viver cristão. Isto é, qualquer obra que entrasse no cânon, tinha de ser produto do “cristianismo primitivo” e ser amplamente usada com o guia útil para ensinar c viver o cristianismo.
Os pais da igreja, com o Ireneu, Tertuliano e Orígenes, criaram suas listas de Escrituras cristãs que, de certa forma, variavam um pouco do Cânon muratório e entre si. Ireneu alistou os quatro evangelhos e a maioria das epístolas posteriormente canonizadas, que tratava claramente com o Escrituras inspiradas e autorizadas. Rejeitou os evangelhos dos gnósticos e o cânon truncado de Marcião. Pouco depois de Ireneu, Tertuliano seguiu os mesmos moldes, assim como Orígenes. Tanto Tertuliano como Orígenes consideravam certos escritos cristãos verbalmente inspirados como as Escrituras hebraicas e usavam-nos para dirimir controvérsias doutrinárias. Nos escritos deles, vem os o conceito implícito de um NT ao lado das Escrituras hebraicas — o AT — na forma de tratarem os escritos que consideravam profético-apostólicos e autorizados. Existia, no entanto, um a certa diferença entre eles, pois Tertuliano tratava o cânon de forma categórica, enquanto Orígenes reconhecia um conjunto de escritos cristãos como duvidosos, porém úteis.
De acordo com von Campenhausen: “E inegável que, tanto o Antigo Testamento com o o Novo, já tinham em essência chegado à sua forma e ao seu propósito finais por volta do ano 200”. Essa declaração talvez pareça um pouco otimista diante das discrepâncias entre as listas de Escrituras cristãs fornecidas por Tertuliano e Orígenes, escritas aproximadamente naquela data e pouco depois. Entretanto, não deixa de ser verdade a afirmação de von Campenhausen, mormente em relação aos que relegariam a um a data muito posterior toda a idéia de um NT e Bíblia cristãos. Não se pode ler Ireneu, Tertuliano ou Orígenes sem notar sua devoção e submissão aos escritos que consideravam especialmente inspirados e autorizados para os cristãos. E, apesar de algum as diferenças, as listas apresentavam muitas coincidências.
Os principais debates a respeito de quais escritas deviam ser incluídas no cânon cristão das Escrituras giravam em torno de Hebreus, 1 e 2 Pedro, Judas, 3 João, Apocalipse, Tiago e o Didaquê, O pastor de Hérmas e a Epístola de Barnabé. Alguns pais da igreja primitiva, bem com o algumas congregações, tratavam até mesmo l Clemente com o parte das Escrituras. Paulatinamente, no entanto, foi-se chegando ao consenso de que todos os escritos da primeira lista — de Hebreus a Tiago — deviam ser incluídos por causa do seu amplo uso em todas as igrejas cristãs (embora alguns fossem totalmente desconhecidos em algum as igrejas) e por causa da sua ligação com os apóstolos. Judas foi aceito finalmente, segundo parece, somente por causa da tradição amplamente aceita de que o autor era irmão de Jesus. As obras da segunda lista mencionada (de Didaquê à Epístola de Barnabé) foram rejeitadas, a despeito de algum as igrejas e pais da igreja que as consideravam inspiradas, porque careciam da qualidade profético-apostólica essencial e de ligação com o cristianismo primitivo.
Os passos finais do processo formal de canonização e criação do NT foram dados, posteriormente, no século IV. A primeira lista contendo somente os vinte e sete livros, de Mateus ao Apocalipse, e mais nenhuma foi criada por Atanásio, bispo de Alexandria e principal defensor da ortodoxia, na sua carta pascal às congregações cristãs do Egito em 367. O texto de Atanásio não dá a menor impressão de que apresentava qualquer idéia nova. Pelo contrário, parece querer estabelecer a tradição normalmente aceita. Dois sínodos foram convocados na África do Norte, em Hipona e em Cartago, em 393 c 397 respectivamente. Os dois declararam a lista de Atanásio com o definitiva e autorizada. A partir de então, a questão do NT estava resolvida. Em parte porque, naturalmente, os sínodos recebiam o apoio imperial e porque a igreja do fim do século IV tinha o poder do imperador para reprimir dissensões e impor a conformidade. Não obstante, o NT, conforme foi identificado e oficializado nos sínodos, resistiu às vicissitudes do tempo e é acolhido com júbilo com o definitivo e final por todas as ramificações do cristianismo desde então. A única grande controvérsia gira em torno do AT e de se ele deve incluir os apócrifos e, nesse caso, que autoridade os livros ali incluídos devem ter para os cristãos.
A igreja cristã “organizou-se” por volta do ano 300. Naquela época, já existia um a catedral cristã próxima ao palácio imperial em Nicomédia e a paisagem do império estava marcada por basílicas. Os bispos governavam com autoridade sobre as igrejas, a liturgia cristã padronizava-se, existia um credo para avaliar a ortodoxia e, para todos os fins práticos, a igreja tinha sua Bíblia autorizada. Sínodos de bispos reuniam -se ocasionalmente para dirimir disputas. Um sistema penitencial estava sendo desenvolvido para determinar com o deveria ser avaliado o arrependimento de cristãos desobedientes. A Grande Igreja estava crescendo, altamente estruturada e formalizada. Só lhe faltava poder político para impor sua ortodoxia aos cismáticos que alegavam ser cristãos, mas que não seguiam o cristianismo católico e ortodoxo. Esse poder não demoraria a aparecer, na pessoa do imperador Constantino, o Grande, que se “converteu” ao cristianismo católico em Rom a entre os anos de 311 e 313. Entretanto, a maior ameaça à unidade cristã e talvez ao próprio evangelho viria, não da parte das seitas heréticas e cismáticas, nem dos inimigos fora da Grande Igreja, mas de dentro da própria igreja. O cristianismo suportou muitas tempestades nos dois séculos após a morte do último dos apóstolos, mas ainda estava para enfrentar o maior furacão doutrinário de todos, o Arianismo.
Fonte:
OLSON, Roger E. História da Teologia Cristã - 2000 anos de tradições e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001.